A primeira vez que me percebi como uma pessoa individual no mundo, digo, sem ser a filha da minha mãe, neta da minha avó ou a irmã mais nova do meu irmão, foi um dia que saí do banho e me olhei no espelho. Era um espelho alto, redondo. Na altura que eu tinha só conseguia ver meu rosto, talvez um pouco mais. Nesse espelho eu vi uma pessoa, mas não era eu; quanto mais eu olhava, menos eu reconhecia. Aquele cabelo comprido e volumoso não era meu, aquele rosto redondo e de menina não era o meu, os traços eram uma mistura de pessoas conhecidas, mas não era eu. Lembro que depois de vários (infinitos) minutos me encarando, resolvi falar comigo mesma em voz alta. O susto que eu levei ao perceber que aquela voz não era a minha, nada daquilo que eu via ou ouvia condizia com quem eu achava que eu era. Falei meu nome várias vezes, que tipo de nome é esse? Meio sem sonoridade, sem personalidade…
Mas quem eu pensava ser? Será que algum dia já tinha pensado sobre isso? Lembro que não levei a sério esses pensamentos e nem contei para ninguém. Já tinha ouvido dizerem que se você repetir a mesma palavra no espelho várias vezes ela perde o sentido. Poderia ser algo assim, me olhei demais. Me ouvi demais. Me duvidei demais. Perdeu o sentido, ou nunca teve um.
Naquela época em que eu tinha um cabelo super volumoso e um rosto de menina, era normal que para “ocasiões especiais” minha mãe quisesse alisar meu cabelo e me vestir com uma roupa mais arrumada, que não fosse camiseta larga ou uniforme. Acho que seria normal me sentir bonita daquele jeito, mas adivinha só?! Eu me sentia ainda mais estranha. Parecia que daquele jeito eu não poderia brincar, nem me mexer muito, nem sujar a roupa, muito menos sentar de um jeito confortável. Não poderia fugir do papel. Tentava até imitar como as mulheres se sentavam, de pernas cruzadas, mas até isso era errado, minhas pernas eram muito curtas para isso. Ou será que era desconfortável para todas e elas só aguentavam porque um dia imitaram outras mulheres fazendo isso?
Foi um caminho sem volta esse encontro com o espelho. Depois de perceber que eu não era aquela pessoa, passei a cuidar do jeito como caminhava, corria, pulava. Foi horrível! Eu sentia que pisava torto, corria errado, pulava estranho. Tudo naquela pessoa era diferente de mim. Onde foi parar meu corpo? Aquele feito para mim? As outras mulheres também se acham estranhas fazendo essas coisas? Será então que eu não sou uma mulher? Parece tudo tão fora do quadro…
Depois daquele primeiro encontro com o espelho, outros vieram. Foram diversos encontros, com o peso, o cabelo, as roupas, o tamanho, o amor. Me vi no espelho e encontrei mais de uma mulher nele e, às vezes, nenhuma era eu. Outros desses encontros ainda vêm de tempos em tempos. Agora revejo aquela pessoa estranha e convido ela para conhecer essa aqui, ficar um pouco e tentar achar algumas peças que poderiam ter sido ou que estavam escondidas.
Me vejo, me ouço e me duvido demais. Parece que sempre vai ter um espelho.
Biografia da autora:
Erika Novello, natural de Passo Fundo. Sou formada em Letras – português, inglês e respectivas literaturas. Tenho 25 anos e sou professora de língua inglesa para crianças entre 2 e 15. Como escritora, além dos contos e crônicas que seguem na gaveta, participei da Coletânea “As Coisas que as Mulheres Escrevem” com um conto chamado “Tempo de morangos”. Sigo acreditando nas palavras de Conceição Evaristo, que disse que uma mulher escrever é um ato político e publicar é um desafio duplo, por isso, resolvi mostrar um pouco mais de mim.