Café

Sinto o frio subindo pelos meus pés em contato com o chão, descalça, acabara de acordar e transladar minhas pernas da maciez da cama para posição vertical, apoiando a planta dos pés e dando um impulso. Levanto, finalmente, e descubro todo meu corpo. Estico o braço bem alto, alongo, vários bocejos surgindo, um tremor de leve e, enfim, o primeiro passo rumo a cozinha. Pequena era a mesma, poucos metros quadrados contendo uma bancada com armário na parte de baixo e uma pia acoplada. Ao redor da pia, há espaço para o escorredor de louça de um lado e uma tábua de cortar legumes (quando necessária) do outro. Há um fogão padrão de quarto bocas ao lado da bancada e encostado na parede, onde fica uma janela um tanto pequena (também). A geladeira fica na parede oposta à bancada, bem ao lado da porta que dá para o quarto, dormir sempre embalada pelo barulho oscilante do motor da geladeira já era uma realidade para mim.
Estou aqui, nesta cozinha gelada, para preparar meu café. Todas as manhãs faço o mesmo ritual, complexo olhado de fora, mas muito natural e orgânico olhado por dentro de mim. Preparo o café em uma cafeteira italiana, daquelas que vão a boca do fogão, fazendo um café forte e escuro e inundando a casa toda com o cheiro característico e enérgico da bebida. Minha cafeteira é preta e tem um formato que considero clássico: uma parte inferior em formato de tronco de cone, em que a base decagonal que entra em contato com o fogo é maior que a base decagonal onde a parte superior da cafeteira é acoplada; a parte superior, por sua vez, também é um tronco de cone de base decagonal, a menor é a que se acopla com a outra parte da cafeteira e a base maior contém a tampa e um bico por onde o café será despejado uma vez pronto. Há também uma alça, afinal o corpo de alumínio da cafeteira fica extremamente quente durante o processo. Estas composição e encaixe das partes inferior e superior da cafeteira formam uma figura acinturada no centro, com uma faixa prateada que delimita a rosca por onde os pedaços se enroscam. Dentro da parte inferior, há um funil com uma peneira de alumínio encaixado na boca, é ali onde o café moído é colocado, esse funil está em contato com a água que preencherá todo espaço restante. A parte superior é mais simples, possui um mastro vazado bem ao centro por onde o café pronto derrama uma vez que a água em ebulição na parte inferior levanta-se e passa pela peneira, entrando em contato forçado com o café moído (realizando a mágica da mistura) e explodindo para o reservatório final. Dos detalhes comuns de todas cafeteiras italianas, a parte inferior conta com uma válvula de segurança que parece um botão que não podemos apertar (ou obstruir), na minha esta tem a cor cobre, e dos detalhes singulares que permeiam as cafeteiras de acordo com o uso que seus donos fazem, a minha possui pequenas falhas na tintura preta, resultado das lavagens e trombadas com outras louças nos escorredores da vida.
Não apenas de colocar o pó no compartimento e acender a chama do fogão consiste meu ritual, gosto de moer na hora o grão de café já torrado. Para isso, uso um moedor manual com uma manivela no topo que, ao ser girada, movimenta lâminas que comem os grãos triturando-os no pó a ser diluído. Estou aqui, na cozinha então, com o moedor na minha frente, já cheio de grãos, e a cafeteria esperando desmontada e paciente ao lado, a manivela é fria ao toque e aperto seu cabo de madeira com a mão direita. A primeira volta conta com a resistência da unidade dos grãos ainda íntegros, tem um som que sai quando o primeiro é quebrado, o som do gênese partido, crec, crec. Um som tão som quanto qualquer outro seguido de um cheiro terroso cafeinado. O cheiro do café é vermelho escuro, antes de ser passado, o vermelho escuro da terra que cresceu e se desenvolveu, cada grão deve levar consigo os minerais da sua terra natal. Natalinos que são os grãos vermelhos, podiam muito bem enfeitar os pinheiros nas casas, mas são torrados, levando seu vermelho apenas no cheiro quando triturados.
Há lembranças que tenho quando realizo o mecanismo da moagem (fina, porém não muito), um mercado no centro da cidade e meu avô segurando minha mão enquanto se dirige para a barraquinha com uma placa escrita “Café moído na hora”, o cheiro é mais intenso e vermelho nessas lembranças, quase transmutando do escuro para o berrante, há o amarelo da voz do vendedor que combina com o saco de papel onde o pó é acomodado para viagem, amarelo escuro, contra o verde dos calos das mãos do meu avô, ainda sinto os calos quando agarro a manivela de madeira, eu seguro sua mão e a outra mão carrega o café. Seguro sua mão na transcendência do tempo enquanto seguro o moedor. Em seu caixão também segurei sua mão na despedida de seu corpo, não senti os calos, há muito suavizados na doença que o acometeu no final, não senti o verde das manhãs que íamos buscar o café moído na hora, apenas o cinza da ausência. Café moído na hora fixou-se no meu inconsciente atrelado ao gosto que refinei quando adulta pela bebida. Café moído na hora era a regra para eu conseguir sorver o líquido quente aquecendo também uma parte de mim que ficara rígida com o passar do tempo. Nem todas lembranças são boas, mas essa acende o conforto dos tons da serra, já sentiram como a serra tem cores que acalmam os olhos? Café moído na hora é conforto no vermelho da terra, no verde das folhas e no castanho dos galhos.
O som da moagem não traz tantas lembranças, é mais o cheiro e o toque da madeira que acendem meu inconsciente. Uma vez que todos os grãos estão moídos, acomodo-os gentilmente na peneira de alumínio da cafeteira, mas antes devo preencher de água o espaço vazio inferior, água até o botão de cobre, a válvula de segurança para evitar explosões de café. Sinto que o escoar da água aproxima-se do verde turquesa, um som de mar ao fundo no meio do interior de um estado tórrido. Meus dedos já sabem o tanto que devem esperar com a torneira aberta, o tempo de encher o vazio está gravado nos meus movimentos diários ao fazer café, mecanicamente eu giro e fecho o fluxo, interrompendo o verde e o som familiar. Arranha o encaixe da peneira com o inferior da cafeteira, encaixa, preenche dos grãos transmutados vermelho terra, acopla e rosqueia. O foguete está montado, falta a ignição da chama do fogão, mas há o detalhe: recomenda-se colocar um pouco de água na parte superior (onde cairá o café pronto) para evitar amargores. Evito estes, que ao menos posso controlar.
Amargores são sibilos jogados ao vento quando a tristeza canta, não há vento no meu apartamento, porém há sibilos que chamam em minha cabeça amargores passados. Fantasmas sussurram na cafeteira, é uma característica que muito me atrai nesse método de fazer café, a medida que a água entra em ebulição e faz a mágica, sons saem dela. Sussurros amargos do café (não tão amargo ainda), vejo-me sentada na sala de vidro, estou atrás de mim mesma, já com uma certa idade, esta não é uma lembrança infantil. Um cobertor cobre minhas pernas que vejo parcialmente dobradas, meu ângulo de visão do inconsciente coloca-me em um lugar não muito fácil de ver-me. Não consigo exatamente olhar meu rosto, ele é reflexo da parede de vidro da sala de vidro imersa numa noite de lua nova. Está sombreado, também as lembranças não são assim tão fiéis, a impressão que tenho daquele dia é de que eu estava chateada, por isso sentei sozinha a noite na sala com um cobertor sobre as pernas, estava frio. Minha mão levanta no meu duplo apagado, apoia o cotovelo no sofá e fica assim, com os dedos levemente arqueados, suspensa a mão da meia idade. Eu aqui respiro e ali suspiro, minha voz é o som do café derramando, antes minha voz era o grito do choro e da vergonha. Eu sinto luto e desespero emanando na mente suspensa suavizada pelo meu reflexo. Naquele dia perdi algo e nunca mais encontrei. Não cabe aqui dizer exatamente o que, depois de tantos anos o que sobra é a cicatriz. As lembranças são os reflexos dessas cicatrizes, meu reflexo é a parede que sustenta aquela sala do passado, rodeada de vidros e mato. Ainda há o cheiro da serra, mas também o cheiro do cinza e da ausência.
Já pronto, cessados os sussurros, o café derrama agora da cafeteira para caneca, o choque do frio com o fumegante aquece minhas mãos, o toque com os lábios rachados e secos traz o amargor familiar do café, não o amargor ruim, o café foi bem feito e é amargo na medida. Não uso açúcar, nem adoçante, não coloco véus de beleza nas lembranças tampouco. O que vem em mim vem cru e despido. A caneca é o fio que me liga a manhã após a noite da sala de vidro, uma manhã fria e chuvosa, talvez a manhã de um ano novo, talvez uma manhã qualquer. Levanto na memória andando nas pontas dos pés para não acordar os fantasmas, estou sozinha na casa e as luzes estão apagadas, não quero acendêlas, sinto o frio descalço de meus pés, não cubro meus braços, nem troco de roupa, vago com a camisola solta pelos cômodos tentando achar algo de familiar na sua ausência. Não há café na memória, não há o quente do conhecido, começo um futuro que no momento nunca pensara para mim. A caneca é a mesma, a caneca do passado é a mesma que seguro no quente do presente em um apartamento tão diferente daquela casa de vidro. Ela realmente existiu? Ou é meu castelo da memória? O vidro, os sussurros (tão parecidos com o vento cantando na serra), o café.
O café transcende em minha mente, dos calores da infância, aos amargos da juventude conectando a serenidade do presente. O café das manhãs compartilhadas à mesa com pessoas e afetos é o mesmo café das reflexões solitárias da ausência. Ausência de si, ausência momentânea de mim e dos meus. Os grãos, a moagem, os sussurros e o resultado final descendo da minha boca ao meu estômago, enraizando pelas minhas veias, são o fio do consciente com o inconsciente das memórias que foram um dia, sendo hoje o passado e futuro de mim. O rosto no espelho de vidro da lembrança de uma sala que, talvez, nunca existiu. O estilhaço das paredes e o café todo espalhado no chão, um joelho machucado na infância e minhas mãos cortadas tentando recolher os cacos, quais cacos? Da caneca ou de mim? Vou ao banheiro lavar as mãos sangrentas, meu espelho está com defeito, não vejo o rosto velho, não vejo meu eu jovem, tampouco o frescor de mim criança. Vejo nada, mas nada não me incomoda, chegou a hora, mais um café, por favor.

 

Texto por Camila Lages

 

 

Biografia da autora:

Sou Camila Lages, apaixonada por livros e por escrever desde nova, acabei seguindo outro caminho na vida profissional e virei matemática. Atualmente, com 30 anos, estou terminando meu doutorado na área e redescobrindo meu prazer em escrever por escrever e para estar mais próxima de mim.