Januário sempre fora difícil de lidar. Ao chegar à maioridade ninguém sabia ao certo se estava blefando ou falando a verdade. Nos momentos de maior tristeza, sorria. E na alegria, chorava.
A família já estava acostumada, mas era sempre muito complicado com os vizinhos: Parece que tem duas caras! , diziam uns. Nunca se sabe se vai ser grosseiro ou gentil, diziam outros. É um falso, diziam todos.
Em uma tarde de verão particularmente chuvosa e trovejante, mudou-se para a casa ao lado de Januário um senhor de idade muito avançada: Como será que se vira sozinho? foi o questionamento na rua. Deve ter por volta de 100 anos, presumiu o vizinho da frente. Eu falei com ele e vi que tem TODOS OS DENTES! É um fenômeno! sentenciou a vizinha da esquina, ela própria um fenômeno, capaz de contar os dentes de seu interlocutor em uma simples troca de olás.
Os dias se passavam e o mistério em torno do Sr. Crônio Rex (sabiam seu nome porque sua correspondência foi “coincidentemente” trocada com a da vizinha da esquina em mais de uma ocasião) só aumentava. Era um senhor carrancudo mas parecia ter tomado uma certa afeição por Januário. Os dois passavam horas conversando.
O caso é que Januário trazia uma sina que ninguém mais no mundo sabia, exceto o Sr. Rex. Na verdade, ele poderia jurar que o Sr. Rex sabia de tudo que se passava com todos. Desde sempre. Desde o início dos tempos.
Certa noite, véspera de Ano Novo, como era de seu feitio, após dizer que ficaria em casa, Januário dirigiu-se à porta e saiu. Claro que iria visitar seu amigo Crônio Rex, disso ninguém tinha dúvida.
As horas se passaram e nada de Januário voltar. Vieram as comemorações, os fogos de artifício, os abraços, e nada.
Depois de muito tempo, voltou para casa diferente. Ninguém sabia dizer ao certo, mas Januário parecia ter envelhecido alguns – muitos- anos. Além disso, acabaram-se as contradicões: tudo o que lhe perguntavam, respondia, apesar de pouqíssimas palavras, com certeza. Seu rosto trazia agora uma expressão muito aliviada, tão diferente do passado.
Naquela madrugada de primeiro de janeiro, o jovem Crônio Rex sentou-se em frente à TV desligada, tomando da bebida antiga que trazia sempre em suas mudanças e, depois de olhar fixamente para a máscara de homem, com sangue fresco ainda escorrendo pelas bordas, que agora pendia da parede, fechou os olhos e dormiu um sono profundo, de dever cumprido. Um dever que cumpria desde sempre. Desde o início dos tempos.