Chico tinha carência de água, por isso gostava tanto de chuva. Ele lembrava bem da primeira vez que viu as gotas despencando do céu, mirradas e bem poucas,quase incapaz de molhar a roupa. Jurou de pé junto que era Deus chorando de dó daquela vida áspera,mas sem esbanjar de lágrima, pois ali não se podia, onde a garganta chegava a arranhar e o nariz se doía inteiro do ar quente, não se podia.
O fundo do mundo era seco. O chão, o ar, a casa, a gente. A gente dali era seca, árida, desértica. Caminhavam, mas não faziam barulho, completamente inseridos em um vácuo completo de silêncio e secura ardida. Suor e choro, nunca viam, pois sabiam que era perda de vida deixar água cair naquele solo tão quente. Não entendiam de física,mas tinham medo da calefação, tinham medo de chorar ou de suar tanto,a ponto de desaparecerem no chão quente, que consumia qualquer matéria líquida com uma velocidade tremenda. O chão era carente de água assim como Chico, que um dia, tendo um sonhos estranho e muito azul, procurou José de Andrade Cunha na cabana perto do poço seco e descobriu que o tudo era um e que melancia não dava em árvore. Foi quando ajuntou meia dúzia de panos, uma medalhinha de Santa Bárbara e um retrato dos 6 irmãos, mais mãe e pai, disse a todos que vinha logo e trazia boas e isso era coisa grande, já que no fundo do mundo substantivo não adjetivado por bom não valia de nada. A mãe de Chico, dona Rosa Maria, pedia pro bichinho voar perto pois sabia que pra lá da frente, o mundo era grande e vasto e seu filho era um homem mirrado, com pernica de sabiá e peito murcho. Mas também sabia da teima de Chico e no dia que ele cruzou o portão de madeira segurado por arame, ela já não era mais mãe de 4 moças e 3 rapazes e do retrato da sala, cortou o rosto do menino do meio.
Chico fez andanças grandes em sola de pé,carroça e bicho grande de aço que ele nunca tinha visto, só ouvido falar. Continuava sendo seco, mas agora, suava e chorava o tempo todo. Já não tinha medo de desaparecer no mundo, pelo contrário, parecia que tinha surgido no mundo, pois por onde passava tinha olhos sobre ele. Ele e suas mãos calejadas, seu rosto rachado e seus escassos cabelos. Tinha nascido pro mundo e se sentia bem, mesmo que soubesse que o nascimento era sinal de morte certa.
Sem saber p’onde, ia indo na vastidão da travessia sem fim,vendo nascer em baixo de si uma terra dura, seca e cinza, que diferente do que ele conhecia, não matava as águas, mas fazia o mundo se encher mais do que o poço seco da casa de José Andrade da Cunha. Via água limpa correr pelos cantos da vida e decidiu seguir avasculhando a imensidão do tudo.
E choveu.
Um dia tal, que ele não sabia o motivo, desconhecia a mania de contar dia e hora, pra ele era tudo par do mesmo. Choveu uma chuva tremenda, de vento forte e cortante. De baixo dela, estava Chico e só Chico parecia capaz de não se importar com aquilo, com a água em seu sapato velho, molhando sua roupa, seu cabelo e um papel que ele pegou da mão de um certo moço. Pela primeira vez, foi abraçado e não abrasado. Tinha diferença muita.
Sentado, tomando a chuva cortante, só Chico, olhando pro céu e rindo,afinal, Deus tinha dó e ele era carente de dosagem.
Texto por Clara Lua de Oliveira