Estória Insólita

Até morrer eu não sabia que minha vida era um sonho e que meu corpo não era corpo, e que minha carne era feita de palavras, como aquelas palavras dos livros de receita que ficavam na cozinha mofando porque ninguém precisava ser lembrado de nada, estavam todos muito ocupados existindo.

Na minha casa não haviam noites. Os dias eram compridos e terminavam em outros dias ainda mais longos até que já não se soubesse que dia era. Eu sabia as horas porque mamãe e vovó faziam as mesmíssimas atividades em certos intervalos considerados outro dia, como trocar as roupas ou me chamar para o almoço que era servido as três da tarde no relógio de Dona Ziralda.

Dona Ziralda trabalhava lá em casa já fazia tanto tempo que ela também já perdera a noite, carregava umas olheiras profundas no rosto, quando abria a boca o hálito de peixe me deixava enjoada, mas como Ziralda era uma boa pessoa, eu não estava autorizada a lhe mandar escovar os dentes com os dedos. E nem quando morremos com poucos dias de diferença pude lhe dizer algo, porque mamãe lá no canto da cozinha erguia o dedo e me deixava sem voz.

Dona Ziralda tinha esse hálito porque na minha casa também não haviam escovas de dente. As escovas lembravam à mamãe à figura pálida de papai, com seu pijama de mangas compridas e listras, que se arrastava até o banheiro todas as noites e escovava as gengivas com tanta força que já não eram gengivas, transformavam-se em bolotas de sangue. Quando papai lhe dava um beijo de boa noite, ela ficava marcada de vermelho.

Nunca pensei muito sobre o fato de não ter escovas de dente ou dias, podia-se deitar na cama quando se estava cansado, fechar os olhos e esperar passar o tempo como um monge contemplando a existência. Vovó passava boa parte de seus dias infinitos assim, porque dizia que estava cansada demais para todo o resto. Eu não tinha essa capacidade, então mamãe mandava vir da cidade mais próxima uma pilha de livros que me entretinham durante à passagem dos dias.

Nos livros as pessoas tinham noites e sonhos, porém, mamãe quando sentiu a inveja que brotava das leituras, subiu ao quarto e deixou apenas os livros que não tratavam do assunto, eu podia ler apenas livros de física e matemática desde então. O que mamãe me disse com muito amor, era que o fardo dos Maldía como nós, era não poder sonhar porque qualquer coisa virava realidade. E a realidade não era suave como nossos sonhos.

Na minha casa a fronteira entre sonho e realidade era tão fina que se estendesse o braço para o outro lado e pensasse um pouquinho a respeito, podia puxar um unicórnio e fazê-lo real. Coisa que aliás já tinha me acontecido quando completei cinco anos, foi meu pedido na hora de assoprar as velas, o problema é que não imaginei que ele sairia cavalgando da fazenda e nos deixaria ali chocadas.

De qualquer modo, nunca mais vi o unicórnio, embora mamãe tenha dito que saiu algo sobre ele no jornal. No final, devem tê-lo matado como fazem à tudo que é diferente e rasteja sobre a mesma terra que os homens cobertos de medo. Era por isso que todas as mulheres Malodía viviam juntas e isoladas ali.

Papai havia sido morto em um acidente, depois que ainda bebê desejei com tanta força que tudo se explodisse, quando o choro acometia meu corpo e a dor balançava meus ossos, que matei o coitado sem querer. Foi o primeiro crime que cometi em uma longa lista de pequenas infrações.

Depois disso, mamãe chorou tentando juntar os pedaços de papai espalhados pela cozinha, porém isso não era possível, porque qualquer desejo infantil é muito mais poderoso que o resto do mundo. Nesse dia, vovó me embalou e pediu para a Dona Ziralda guardar o bolo que já não havia comemoração.

Hoje, quando fico parada ainda posso puxar qualquer coisa pela fresta da realidade, mas já não explodo pessoas como explodi papai. Mamãe parece contente com isso, seus temores não se realizaram, embora ela ainda mantenha à luz de emergência acesa para o caso de o dia virar noite sob a minha indomada vontade.

E se não pude fazer isso, nem pude evitar a morte, ao menos não evito de continuar escrevendo esses diários. Mesmo correndo o risco de que mamãe deixe seu olhar cair sobre eles e eu me encontre em pior situação de morta que de viva. Mas, na minha casa, a morte também é fina, e posso passar de um lado para o outro da realidade, como agora. Como faço enquanto você me lê.

 

 

Biografia da autora:

Laura Elizia Haubert. Graduada e Mestre em Filosofia pela PUC-SP. Participou de antologia de contos como “As coisas que as mulheres escrevem” pela Desdêmona Editora e também de revistas literárias como a Revista Ponto do SESI-SP e a Revista Subversa. Publicou em 2015 pela Editora Multifoco o livro ‘Ode à Nossas Vidas Infames’, em 2017 pela Editora Patuá o livro ‘Sempre o mesmo céu, sempre o mesmo azul”. Publicará, agora em 2019, pela Quintal Edições o livro “Memórias de uma vida pequena”. Atualmente vive em Córdoba, na Argentina.