Martin e Magnólia

Sempre me perguntam se eu não tenho vontade de escrever, se eu já não escrevi algo que quisesse publicar. A verdade é que sim, aqui e acolá, escrevo algumas linhas, inicio alguns contos, cometo algumas poesias – o que é um absurdo, pois estou longe de ser uma leitora assídua de poesias. A questão é que me falta uma centelha de vaidade para achar que algo que escrevi mereça ser lido, publicado; mereça ter existência no mundo. Sempre achei que fosse preciso ter um grau de vaidade a mais para achar que se deve dar existência a alguma coisa; fazer com que algo nasça no mundo. E enquanto escrevo, penso aqui no possível desejo de escrever um livro, romance que seja, e no improvável desejo de ter um filho, que, além de amor, requer também, penso eu, alguma vaidade. Um sentimento que nos convença de que é importante fazer algo. Criar algo. Ter a iniciativa de alguma coisa nova, inédita, que não existe e passará a existir por você, o autor, a autora, o pai, a mãe.

Porém, nos últimos tempos, últimos dias talvez, uma angústia de escrita vem se apoderando de mim. Algo que posso traduzir mais ou menos assim: se não me arrisco a escrever algo autoral, sou tomada por uma tristeza, uma sensação de falta, de fracasso, como se houvesse uma necessidade que não está sendo atendida como deveria. Se começo a escrever, porém, sou tomada por uma espécie de ansiedade, próxima a uma angústia, de não saber por onde continuar. Não saber aonde aquilo vai dar. Me ocupo, então, não apenas de escrever, mas de organizar mentalmente os próximos passos da minha escrita. Aonde os meus textos me levarão. Quais caminhos seguir. Quais assuntos abordar e em quais sequências.

Eis que, em um desses momentos quando acabamos de acordar, mas ainda pensamos em um modo meio sonâmbulo, se assim posso dizer, comecei a traçar a ordem dos assuntos que me interessavam abordar nesse tema que chamei de angústia de escrita. Algo como, “responder ao porquê de eu não escrever; falar sobre a necessidade que me surge de retomar alguns textos; mencionar o tempo que dedico lendo os outros; lembrar que sempre penso em fazer algo com essas leituras, algumas anotações, uma crítica etc., mas que, antes que seja possível, já estou mergulhada na leitura de um próximo romance; abordar a necessidade de escrita que, por vezes, entra em conflito com a necessidade de viver; falar do desejo de mover o corpo, de encontrar pessoas, pedalar, viajar, andar por ruas, sair de uma e entrar em outra, sempre; dizer que é como nos livros, como sair de um romance e mergulhar em outro, sem tempo para refletir, para elaborar; é como estar sempre em vida, em movimento, nadando”.

Mas em meio a tudo isso, penso, há por vezes um sentido que se perde, que escapa. Há uma sensação de que estou indo rápido demais e de que precisava fazer algo nos intervalos. Uma reflexão qualquer que recuperasse um sentido. Que explicasse melhor um pensamento. Que espaçasse uma fala. Como um fio que conecta e que, por vezes, se perde na vida de um modo semelhante a palavras que se perdem em um texto. Um texto que trava. Bloqueia. E cujo fio condutor não consigo encontrar e receio que se perderá para sempre. E será que, por um mecanismo de compensação, uma espécie de loucura qualquer, esse fio perdido no texto, ao ser reencontrado, refeito, talvez redirecionado, não me daria também uma pista sobre os sentidos da vida que um pouco se perderam, que não foram vistos, não foram recuperados. Será que tecer algo no texto, por um mecanismo de reflexo, não seria também tecer algo na vida? Reencontrar uma direção perdida, uma pista, uma brecha que se abriu para o novo e, no ritmo acelerado, na busca frenética por viver, viver, viver, não tomei a boa direção? Ou, melhor, a direção que traria algo de novo, que surpreenderia de um modo belo…?

E nessa avalanche de pensamentos, quando já não podia mais segurá-los, gravá-los em minha memória, e sentia que precisava dar-lhes alguma concretude sob pena de se perderem para sempre – e seria algo grave, que eles se percam?, pergunta meu lado desejoso de mais vida, mais mergulhos e menos pausas – me vem em mente, com uma nitidez espantosa, dois personagens. Rápidos, quase prontos, com desejos, falas, quereres e até nomes.

Martin: rude, denso, pragmático, vociferando que o mundo é um absurdo.

Magnólia, que também poderia se chamar Madalena, mas que prefere, de longe, ser chamada de

Magnólia. Magnólia é doce, tem uma voz suave, é hesitante ao extremo, não sabe muito bem, quase não sabe, o que quer. Chega mesmo a duvidar, em alguns momentos, de querer algo.

Magnólia tem vida, é leve, transita entre as situações mais diversas com muita facilidade. Ela lembra a primavera, seu nome não é um acaso – ou vice-versa.

Já Martin, se fosse uma estação, seria o inverno. Martin poucas vezes para pra pensar sobre o que pensa. Martin age. Acredita na rotina. Acredita que o sentido está em manter um ritmo, andar na marcha, falar com amigos, dar bom dia ao porteiro, comprar o pão de manhã, se ocupar das preocupações diárias.

Martin e Magnólia não se conhecem. Habitam mundos extremos. Opostos. Se vestem em estilos opostos. Magnólia adora a cor laranja. Ama ir à feira com uma bolsa pendurada a tira colo, dessas de tecido reciclado, e voltar para casa cheia de legumes, frutas, mel, grãos que ela colocará em potinhos e mal usará no dia a dia, mas que, no momento da compra, lhes pareceram essenciais.

Martin fala pouco. Programa pouco suas saídas. Ele está longe de ser um homem sem graça, longe até de ser um tipo comum. É sua solidão, seu olhar certeiro para o mundo, de uma lucidez brusca, pouco elaborada, que o impede de entrar nesse registro. Martin sai de casa para resolver coisas. Garantir que o dia seja útil, produtivo, para que, chegada a noite, ele possa dormir com a certeza de que fez algo. De que o dia não foi em vão.

Magnólia se irrita com facilidade. Fala alto, questiona, diz que sim, ela tem razão, são os outros que não conseguem ver. Mas passa rápido. E seu dia flui. À noite, não lhe vem em mente revisar suas atividades, avaliar se foram úteis, a produtividade não se encaixa na sua realidade. Sentada na cama, ela descasca uma tangerina enquanto procura na TV uma série qualquer, algo leve, que não lhe tire o sono.

Sento eu no sofá da sala. Penso em Martin e Magnólia. Penso no quanto eles pedem para viver. Para existir. Me espanto com suas convicções. Com a vida deles que me ultrapassa. Me pergunto de onde vieram, se são um somatório de experiências minhas, se são fruto da minha observação de outros. Fato é que, Martin e Magnólia, eles nasceram. Fato é também que se impuseram. Ao seu modo. Penso cá comigo se não devo, sem que isso soe alguma pretensão, uma vaidade qualquer, emprestar meu tempo, corpo, desejos e ideias a Martin e Magnólia para ver aonde chegarão. No fundo no fundo, quero mesmo saber se algum dia se conhecerão. E caso sim, se se darão bem. Se encontrarão afinidades. Se rirão cada um do jeito do outro. Se me surpreenderão de algum modo. E, o mais importante, se me ajudarão a encontrar aquela brecha perdida, aquela abertura não vista, que teria me levado para outros caminhos, me mostrado algo que hoje não sei. Martin e Magnólia, que ainda não se conhecem, me salvarão. Me tirarão dessa angústia de escrita ao viverem por mim o tempo que me escapa enquanto escrevo. Enquanto falo deles e por eles. Querendo que existam por mim. Que tomem todos os riscos, que assumam suas histórias. Martin e Magnólia serão uma promessa. Meu segredo diário. Meus amores secretos. Minha maior aposta.

Texto por Raquel Camargo

 

 

Biografia da autora:

Tradutora no par de línguas francês-português. Trabalho principalmente com tradução literária, de crítica literária e de ciências humanas. Doutora pelo Programa de Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês da Universidade de São Paulo – USP, com doutorado sanduíche na Sorbonne Université – Paris IV. Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Desenvolve pesquisas na área de Estudos Tradutológicos, Literatura Comparada e afins. Tem particular interesse pelos processos de transferência que permeiam a atividade tradutória, pelos Estudos de Recepção e por questões de Teoria Literária. Escritos feministas, de gênero e decoloniais também fazem parte do seu campo de interesse e pesquisa.

Traduziu, para a Editora Nós, Irmão de Alma, de David Diop, Sara é Isso, de Pauline Delabroy-Allard, Um belo diploma, de Scholastique Mukasonga, dentre outros. Para a Editora Ubu, co-traduziu, Um feminismo colonial, de Françoise Vergès, As Guerrilheiras, de Monique Wittig, Autodefesa, de Elsa Dorlin, dentre outros.