Às vezes minha cabeça é inundada por uma memória qualquer. Não consigo dizer se elas vêm porque algum cheiro ou a luminosidade se conecta àquela memória, servindo de gatilho pra eu vê-la com toda clareza do dia em que a vivi, ou se isso só está acontecendo como o prólogo da minha morte.
Há alguns anos, uma professora e amiga me deu de presente várias cópias de um livro que curiosamente eu havia ganhado na mesma semana do meu marido, após uma de suas visitas ao sebo. É um livro triste demais pra mim. É ótimo, entendam, mas me despertou um medo que eu antes achava ser só meu. O doador de memórias fala de um homem que é responsável por guardar em si todas as memórias de cheiros, gostos e todo tipo de sensações que já não existem mais, pois o mundo em que as pessoas vivem é neutro, sem intempéries, sem oscilações. Quem ali nasceu não sabe o quão cinza e sem graça é esse mundo, o quão padronizadas são as pessoas e suas ações. Somente o doador sabe e ele tem que passar tudo isso para seu sucessor. Eu me coloco no lugar do menino, que irá receber toda essa informação tão rica. Ele nunca soube o que era um banho de chuva ou a sensação gelada da neve até o momento em que recebe essas memórias. Como deve ser pesado receber tudo isso assim tão cru, tão inexperiente por ter vivido sempre naquela gray zone, naquele mundo despido de sensações extremas, despido de cores, despido de humanidade. Não é como quando acertaram minha receita de óculos e eu pude ver com clareza a cidade toda e os os campos do alto do 12° andar de onde eu morava, porque eu sabia que ali havia tudo aquilo e o problema estava nos meus olhos. O recebedor de memórias não tinha a menor ideia do que ia ver, zero, nada! Deve ter sido como ser levado por um tsunami ou um deslizamento de terra.
O que de fato me pegou nesse livro foi que eu sempre tive muito apego às sensações, aos cheiros, texturas, sabores, porque entendo essas coisas como parte de mim, de quem sou. Sem elas sou somente um corpo, um boneco que anda e fala. Por isso, amo tocar as coisas e deixá-las me tocarem, sou louca por vento e fecho os olhos pra aproveitar todas as sensações que ele causa no meu corpo. Sinto os cheiros que invadem minha casa e acabo muitas vezes descobrindo qual o sabonete que usa meu vizinho do prédio da frente ou qual cigarro fuma o casal de cima. Guardo memórias de tantos gostos que parece que não serei capaz de apreender mais nenhum.Fecho os olhos e vejo minha primeira casa, meu aniversário de 5 anos e lembro de coisas que eu fiz naquele dia, do gosto do bolo, do toque gelado e empoeirado da calçada de lajotas vermelhas, lembro do cheiro da minha mãe de do meu pai rindo, os cachorros acuados embaixo do fogão à lenha por conta de ter tantos convidados zanzando e crianças correndo…. Lembro de acordar no hospital com o braço roxo da borboletinha por onde recebia soro e medicações por conta da meningite e da cara da enfermeira me dando bolo de morango e nata no meu aniversário mais triste: fazer 2 anos no hospital.
Durante a pandemia essas invasões de memórias começaram a se intensificar, a ficar ainda mais palpáveis. Somado a isso, sonhos simbólicos tão vívidos que comecei a misturar memórias reais com as de sonho e nem sempre é fácil diferenciá-las. E é inevitável pensar que os Maias poderiam estar certos e todos morremos em 2012 e o que estamos vivendo hoje é o limbo, o purgatório, e estou tendo que reviver toda a minha vida para a remissão dos meus pecados. Bom, até poderia ser, mas eu prefiro não acreditar em céu e inferno, porque sinceramente o céu me parece um outro inferno, mas isso é outro assunto.
Então é isso… eu tenho medo de estar morrendo e tudo isso ser aquele momento clássico do cinema em que o protagonista vê a vida inteira diante de seus olhos antes de apagar. Mas tenho medo também de ser a doadora de memórias, não porque irei morrer, mas porque a sensação de estar perdendo tantas coisas é real: perdemos natureza, perdemos espaços com tanto carro e prédio atulhado, perdemos qualidade do ar, perdemos tempo trabalhando com coisas que degradam a nós mesmos, aos outros e ao meio-ambiente, perdemos a sensibilidade, perdemos tanto que nem sabemos a extensão de todas essas perdas. E estamos aqui perdendo tanto mais. Alguns até perdendo de sentir gosto e cheiro por um vírus tão mutável quanto o mundo que vejo se desfazer em frente aos meus olhos. Pessoas morrendo, pessoas vivendo como se estivessem nesse mundo neutro do livro… é avassalador. Tem dias que eu choro até ficar com sede de tantas lágrimas que derramo.
Ah, que saudades de deitar na grama com as pernas no sol e ficar ouvindo as cigarras depois do almoço, de poder tomar banho de chuva na calçada de casa, de ler um livro inteirinho sem ter que parar pra resolver compromissos… Que saudade de não ouvir os carros (e máquinas e construções) a toda o tempo todo em todo lugar. Que saudades de não ter que me preocupar se saí de casa sem álcool gel ou sem máscara. Que saudades de sair de casa e (deixar minha mente) respirar.
Texto por Carol Ferraz
Biografia da autora:
Carol Ferraz sempre teve uma quedinha por assuntos misteriosos, mórbidos e místicos. Começou a ler muito cedo, e vivia grudada em livros ou escrevendo por horas e horas suas histórias fictícias, poemas e diários filosóficos e ácidos. No início da vida adulta teve suas asas aparadas e nem mesmo suas histórias de gaveta sobreviveram. Mas, como boa escorpiana, sabe que morrer e renascer é natural e necessário, e agora, aos 33 anos, retorna à sua essência criativa. Carolina é professora e tradutora por profissão; arteira, bruxa e escrevinhadora por natureza.