Os clubes de leitura são um fenômeno que cresce a passos largos. Para além do declarado amor à literatura, são um espaço de escuta, ao contrário do que em geral acompanhamos nas redes sociais. Dá pra dizer que são um exercício de atenção plena, livre de outros estímulos em uma sociedade tão dispersa. Prestar atenção no outro, ouví-lo e enriquecer o nosso olhar não é pouca coisa. Talvez este seja o motivo do sucesso.
Foi exatamente a atenção plena e o debate intenso que marcou o encontro de julho do Clube do Livro Fê Pandolfi + Was de que participo. Cerca de 35 mulheres encararam o frio de um final de segunda-feira para discutir uma obra não exatamente fácil: a distopia “Eu que nunca conheci os Homens” , da escritora e psicanalista belga Jaqueline Harpman. Confesso que custei a me entregar ao livro e sua linguagem objetiva, dura e sem floreios, além da falta de referências espaciais e respostas que nos deixam navegando à deriva. Só depois fui entender que, por certo, esta era a intenção – e talento – da autora. Afinal, não se fala tanto, hoje em dia, de vivermos uma experiência imersiva? Então é isso que Harpman nos entrega, a possibilidade de caminharmos com os olhos vendados naquele deserto de dignidade. Ela não nos explica por que 39 mulheres e uma menina estão presas em um porão sob condições degradantes, muito menos onde elas estão. Mulheres enjauladas sob iluminação artificial constante, mal vestidas e proibidas de se tocarem. É neste ambiente inóspito que a mais jovem, a menina que não tem nome – batizada de Pequena pelas companheiras – cresce, sem memórias e sem outras experiências coletivas que não fosse aquele pesadelo que se resumia em comer, excretar – na frente de todas – e dormir. Curiosamente, a distopia parece se aproximar da realidade, porque não é exagero lembrar dos campos de concentração de Auschwitz e a ausência de humanidade. Vale lembrar da origem judaica da autora, cuja juventude foi marcada pela invasão nazista, obrigando sua família a fugir para Casablanca até o final da guerra.
Enquanto as mulheres lembravam dos afetos e vivências de onde foram arrancadas, Pequena não tinha a menor noção do que isso significava. Ela não sabia ler, não sabia o que era dançar, tinha pavor do contato físico e custava para imaginar o que o amor e um beijo roubado é capaz de provocar. Mas tinha enorme curiosidade, estava disposta a aprender tudo. E aprendeu quase tudo.
A aridez da primeira parte do livro toma novos contornos quando uma sirene soa, os guardas fogem e as grades se abrem. As mulheres estão livres, agora sob a condução da mais jovem e destemida. Pequena é pura curiosidade, não sabe distinguir o perigo e não tem nada a perder. O problema é que a liberdade não difere muito da prisão. O mesmo ambiente estéril e sem perspectivas se repete, agora a céu aberto. E dá-lhe desesperança.
Dali em diante, Harpman deixa claro que não irá entregar o que esperávamos. E é assim que o livro se agiganta, porque nos causa incômodo a falta de respostas, de controle, não por acaso um sentimento compartilhado pelas 39 mulheres do livro. Afinal, fomos criados para dar sentido à existência, para vivermos em bandos, construirmos laços afetivos e nos estruturarmos a partir deles. Por conta disso, as mulheres aos poucos perdem a esperança, desistem de procurar aquela vida que já viveram. Pequena não. A disposição de seguir caminhando em direção a um mundo que possivelmente nem ela saberia descrever, talvez fizesse parte da necessidade de construir uma identidade e uma história própria, mais humana e próxima àquelas que as mulheres lhe contaram tantas e tantas vezes. O que nos faz humanos, afinal?
Lembrei de um texto icônico de Galeano quando terminei o livro : “os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me disse que somos feitos de histórias”.
Texto por Marta Regina Schlichting
Biografia da autora:
Marta Regina Schlichting é jornalista, assessora de comunicação e produtora de conteúdo. Gosta de ler e contar histórias.