Por Yêda Daiane F. Pessoa
Era flor regada à água salgada.
Pequenina sonhava com a grandeza do mundo, diante da imensidão do oceano a perder de vista diante dos seus olhos e os milhões de grãos de areia branca que sentia por entre os dedos de seus pés pequeninos. Quando criança sonhava com os mistérios da vida e na escuridão desejava em seu mais profundo íntimo, engarrafar sonhos e estrelas. Não sendo possível tocá-las, engarrafava pequenos vagalumes mágicos.
Admirava-os brilhar e automaticamente se teletransportava para lugares longínquos, onde viveu grandes momentos ao som de teletemas. Embora seus pés descalços doessem rente ao chão acidentado, simplesmente não os sentia, pois, há muito trocara a realidade por sonhos felizes. Sempre flutuou na mais alta nuvem, alcançou em seu foguete todas as galáxias inexploradas pelo homem e acreditou que seria fácil agarrar todas as belezas que a vida lhe prometera.
Colecionava tesouros em um lugar secreto, coisas que para outras pessoas eram insignificantes e descartáveis, mas que para ela, eram envoltas de uma magia inexplicável. Alquimia intocada e ignorada, fórmula mágica das relações humanas. Sentia que naquele lugar secreto estavam escondidos a essência de algo muito importante.
Contemplava em dias alternados, sempre ao por do sol seu tesouro maravilhoso. Abria as janelas e cuidadosamente dispunha cada peça sobre a cama e os admirava individual e delicadamente. Encantada os observava como se nunca os tivesse visto, como se eles fossem lhe contar novas confidências e revelações surpreendentes. Ao tocá-los, se sentia invadida de memórias, histórias e brandura. Analisava de perto todos os objetos para redescobrir seus detalhes e seus supostos poderes mágicos ainda ocultos. Apreciava a beleza disposta a sua frente sendo banhada pela luz alaranjada do sol que penetrava sem pedir licença pelos vidros das janelas. Seu tesouro consistia em cartões comemorativos feitos à mão, um caleidoscópio, um par de asas de libélula, convites de casamentos, conchas, fotografias antigas, anotações e um relógio de bolso.
Ao tocar esses objetos, sentia inexplicavelmente, que ali havia algo que explicava tudo, algo extraordinário. À medida que cresceu, começou acreditar que esse sentimento só podia ser descrito por uma palavra: amor.
A cada novo ano, mais objetos eram adicionados à caixa. Anotações, recortes de revista, cartas sem rementes, desenhos feitos por crianças, um estetoscópio, pois acreditava ser importante ter como auscultar batidas de coração, afinal, o que seria de seu tesouro sem batidas de coração?
Cresceu sonhando e esperando pelo amor que se personificaria diante de seus olhos de alquimista. Regava-se sempre em águas marinhas. Na juventude descobriu Clarisse Lispector e pensou que talvez também soubesse muito sobre o mar, e sentiu lalande.
Em sua espera, adicionou objetos à sua mágica, arrumou a casa, engarrafou luzes, cultivou flores e os mais doces sentimentos. Quando menos esperava, algo bateu a sua porta e acreditou que fosse o amor. Ao observá-lo de perto, descobriu que talvez o amor tivesse algo a mais, algo que não havia em tesouro. Embora estranhamente sentisse que havia uma conexão entre seus objetos preciosos e a figura a sua frente.
Perfumou-se, cobriu-se de roupas amaciadas de capricho e ternura, descobriu o que era carinho, enfeitou os cantos das paredes com primavera e observava maravilhada as folhas que pendiam e caíam pelo chão enfeitando sua casa, sua vida em tons rosa e lilás. Reconhecia algo fabuloso naquelas fileiras de janelas abertas, no vento que soprava alto as cortinas cor de marfim, nas quais fazia questão de não prender para que pudessem dançar livremente. Passava horas observando os movimentos desconexos. Pronunciava o nome dele em voz baixa e dizia para si mesma: “Digo teu nome para que ele se fixe nas paredes do meu mundo. Enfeitando-o assim com suas gotas de amor multicolores.”
Em sua torre, observava e esperava que o amor entranhasse e adentrasse mais fundo naquele lugar, nos móveis, nas frestas, nos objetos e nela mesma, e ele adentrou. Muito embora ainda não entendesse e muito menos imaginasse que ele apenas estivesse de passagem. Ainda não sabia naquele instante, que o amor é livre, faz morada no corpo, na memória, no coração e na alma; no entanto, não suporta ser preso em caixas ou garrafas.
Não percebendo os costumes do amor, tentou descrevê-lo, eternizá-lo e colocá-lo juntos com seu tesouro, no entanto, não achou palavras que o descrevessem, tudo que tentou reproduzir pareciam rascunhos fracos de algo grande e inexplicável. Tentou retratá-lo em figura para guardar junto de si para sempre, mas sentiu que aquela caricatura de alguma forma não fazia jus ao que seus olhos viam.
Buscou respostas junto ao seu amigo mar, e, olhando para a linha do horizonte, sentiu que não sabia nada sobre amor. Recolheu o “retrato” dele para ofertar “aquele que”. Precisou dizer adeus, embora não soubesse fazê-lo. Mas o fez com todo o carinho e ternura que tanto alimentara ao longo dos anos em seu coração. Olhou-o bem, o ouviu antes que partisse. Sentiu uma ternura inexplicável, uma força que não identificava a origem, mas que a invadia de uma forma incontrolável, entendeu instantaneamente que aquilo era o amor. O amor que não pode descrever anteriormente, retratar, guardar na caixa ou engarrafar.
Percebeu então, que finalmente havia entendido que o amor sempre esteve dentro dela, entranhado em camadas e camadas de pele, correndo em seu sangue. Os objetos nada significavam quando era ela mesma que os tornava mágicos. Desde então, passou a usar seu estetoscópio para auscultar o próprio coração.
Biografia da autora:
Yêda Daiane Forte Pessoa, nascida e educada na periferia Fortaleza. Bacharel em Psicologia. Uma das ganhadoras do VII Prêmio Sesc de Contos Crato – 2018. Escritora e apaixonada por literatura.