Chega um dia na vida da mulher divorciada em que ela finalmente decide voltar a sair. Sair no sentido romântico, ou coisa que o valha, da palavra. E, sendo ela uma mulher divorciada moderna, cede à pressão das amigas e cria coragem para se aventurar num aplicativo de encontros.
Domingo, 11h: perfil criado, aguardando verificação. Mais tarde dou uma olhada nos filtros e nas configurações antes de soltar o perfil no mundo.
Domingo, 19h30: o maldito aplicativo aprovou o perfil e liberou sem me avisar. Sem filtros, sem restrições. O que eu faço com essas mensagens todas?
Domingo, 19h52: um homem da idade do meu pai – do meu pai! – me enviou uma cópia de uma das minhas fotos, acompanhada de uma letra de música. Onde bloqueia, onde bloqueia? Bloqueado. Vou excluir este negócio e é agora.
Domingo, 20h15: filtros aplicados (o de idade, principalmente), configurações definidas. Acho que vou dar mais uma chance.
Segunda-feira, 10h23: “Bom dia, flor do dia!” Engraçadinho. Poucas fotos. “Prefiro me apresentar pelas palavras. Sou poeta, queres me ler?” Não custa ser gentil. “Quem sabe um dia.” “Comece por este. Nele mostro minha visão da morte. Em seguida mandarei um com minha visão do amor.” Errei. Ser gentil custa, sim. Onde é mesmo que bloqueia? Aqui. Bloqueado.
Terça-feira, 17h59: “Topa uma ceva hoje?” “Não, obrigada.” “E amanhã?” “Amanhã não posso.” “Tudo bem, vou te convidar muitas vezes, não desisto fácil, haha. Olha, parece que estamos a menos de 100 metros de distância.” Bloqueado. E a cachorra que me desculpe, mas ninguém vai sair para caminhar agora.
Quarta-feira, 21h14: legal o papo. Curte cinema, literatura. Estamos assistindo à mesma série, que coincidência. Passava as fériasna cidade onde eu cresci! “Mora sozinha?” “Com a minha filha.” “Você tem filha?” Bloqueada. Bloqueada? Cretino.
Quinta-feira, 8h37: “Como assim, vai viajar amanhã? Vou ter que esperar mais uma semana pra te conhecer?” “Cara, eu ainda não aceitei sair contigo.” “Beleza. Achei que tinha rolado uma conexão, um papo legal. Claramente tu só falou comigo pra passar teu tempo. Mas tudo bem, sem ressentimento. Pode ser semana que vem.” É sério isso? Bloqueado.
Sexta-feira, 5h42: “Bom dia!” Isso são horas? “Acabei de chegar de um date. Date bem mais ou menos. Tenho certeza de que contigo seria melhor. Tem disposição pra virar a noite?” Eca. Bloqueado. Bloqueado. Bloqueado.
No sábado, a mulher divorciada moderna enfim aceitou ir a um date. Mas, sendo ela uma mulher divorciada moderna que descobriu que não é tão moderna assim, só aceitou porque o convite foi feito pelo irmão mais velho de uma antiga colega de faculdade. Referências e tal.
Sábado, 9h40: “Bom dia! O sol resolveu brilhar pra gente.” Menos, amigo. Menos.
Sábado, 14h05: “Tá chegando a hora!” Será que já é muito tarde para eu cancelar?
Sábado, 15h43: “Cheguei mais cedo. Mas não precisa te apressar. Vem no teu tempo.”
Sábado, 16h04: ele não parecia tão alto nas fotos.
Sábado, 16h07: “Muito estiloso o teu óculos, parabéns.” Parabéns? “É o mesmo que tu está usando naquela foto da blusa cor-de-rosa, não é?” Bem-feito. Aceitou sair com um escorpiano, dá nisso.
Sábado, 16h09: “Tu quer que eu acredite que este cabelo é natural? Estes cachinhos?” O homem que eu conheço há cinco minutos colocou a mão na minha franja. A mão dele está na minha franja. Homem, tira a mão da minha franja!
Sábado, 16h12: “Pra mim, um chá gelado. Puro, sem açúcar. Tu vai mesmo pedir isso? O xarope é artificial.”
Sábado, 16h41: “Sim, eu sei que tu te diz ‘vegetariana’, mas este livro… Tu precisa ler. Porque o veganismo…”
Sábado, 16h43: o que é que eu ainda estou fazendo aqui?
Sábado, 17h26: “Claro! Por isso que te achei familiar, tu parece aquela atriz. O formato do rosto, os olhos, o cabelo…” Lá vem ele de novo com o meu cabelo. “Até este casaquinho anos 1980. Magrinha igual a ela. Um fiapinho.” Um fiapinho? Ele disse que eu sou um fiapinho?
Sábado, 18h02: “Tu precisa mesmo ir? Posso te dar uma carona?” “Não precisa, vou visitar uma amiga, o prédio dela é ali, dobrando a esquina, muito obrigada pelo convite, tchau, foi um prazer te conhecer.” “CERTEZA QUE NÃO QUER UMA CARONA?” “CERTEZA!”
Sábado, 18h13: dobrei a esquina, entrei na farmácia, chamei um Uber.
Sábado, 18h21: cinto colocado, aplicativo desinstalado.
Divorciada, moderna, mas não tão moderna assim, e cansada. Muito cansada.
Biografia da autora:
Bacharel em Letras pela UFRGS, Fernanda trabalha como tradutora e revisora de texto há mais de 15 anos, ajudando muita gente a se comunicar. Em 2022, finalmente criou coragem para escrever e compartilhar as próprias ideias. Mora em Porto Alegre (RS) com a filha, Olívia, e a cachorra, Violeta. Sua primeira publicação acontecerá em breve, como parte da coletânea de contos Novas Lendas, da Editora InVerso.