O corpo de George
por Marcos Fabrício Lopes da Silva*
A agilidade que esculpe a vida contemporânea exige uma posição de crescente dinamismo. Transpassamos as limítrofes bordas da identidade humana: gênero e sexualidade em trânsito. Faz parte do instigante livro As coisas que as mulheres escrevem (2019) o conto de Aline Menezes, intitulado “O corpo de George”, que ultrapassa o discurso fundante da longa história de repressão sexual no Ocidente para viabilizar uma literatura de contestação e realocação das sexualidades dissidentes. A matriz judaico-cristã da civilização ocidental construiu uma visão deformada da sexualidade humana. É o que se conclui quando se percebe a moral cristã como um divisor de águas na compreensão daquilo que seja moralmente aceitável para a vivência e expressão da sexualidade, sobretudo quando se trata de analisar a construção discursiva que relegou a homoafetividade ao silêncio e à condenação.
A história de preconceito, repressão, sofrimento físico e psíquico ligado à sexualidade no mundo ocidental tem forte ligação com a dicotomia corpo-consciência defendida por Platão (428 a.C.-347 a.C.). No pensamento grego, havia a tendência de explicar o ser humano não como unidade integral, mas composto por duas partes diferentes e separadas: o corpo (material) e a alma (espiritual e consciente). Não era do corpo que a Filosofia se ocupava, mas do espírito e de sua superioridade em relação ao corpo. Essa noção influenciará profundamente os escritos do apóstolo São Paulo, que também vê o corpo como ocasião de corrupção e decadência moral, caso a alma (espírito) superior não controle as paixões e os desejos. Com a visão platônico-cristã que separa o amor espiritual do amor carnal, ligando o sexo ao pecado, a não ser pela finalidade da reprodução, surge o ascetismo dos monges na Idade Média, que impunha flagelos e abstinências como forma de controlar o desejo.
A Reforma Protestante também seguiu a visão do prazer como perigo, que devia ser contido por meio dos ideais ascéticos, sendo o trabalho um meio de purificação e possibilidade de se evitar pensar e estimular desejos. Com a emergência da moral burguesa, o corpo também foi controlado pelo trabalho, constituindo um processo de “dessexualização e deserotização do corpo”. Assim o capitalismo também segue na esteira da repressão sexual para regular os corpos para produzir conforme os interesses hegemônicos. Nessa trajetória de repressão, a homoafetividade e a sexualidade feminina foram fortemente reprimidas e silenciadas. A homoafetividade foi ainda mais vitimada pelo preconceito, pois não seguia os padrões reprodutivos, familiares ou heteronormativos.
“George morreu ali, do meu lado, entre os meus lençóis. Adormeci com alguém que amava e acordei com um cadáver […] Em nossa última viagem, tudo indicava estar em harmonia, bonito e estável entre nós. George me abraçava como se quisesse dizer alguma coisa. E disse. Com as mãos firmes, deslizou-as em minhas coxas. Ajeitei os quadris, para que ele percebesse meu corpo líquido. Notei seu desejo de me beijar. Dois anos antes, nós nos movíamos timidamente, sem entender ao certo como fazer, quando George nada sabia de meus sentimentos mais de dentro. Sempre me achou corajosa, destemida, segura. Qualquer um parecia voyeur de nossa história” – conta a narradora, falando do amor que ousa dizer o nome.
Diante do corpo de George, que veio a óbito por conta de uma “cardiomiopatia hipertrófica”, a narradora guarda dentro de si as melhores lembranças de um amor caracterizado pela “sexualidade plástica”. Melhor dizendo, trata-se de uma “emancipação implícita no relacionamento puro, assim como […] a reivindicação da mulher ao prazer sexual. A sexualidade plástica é a sexualidade descentralizada, liberta das necessidades de reprodução” – ressalta o sociólogo Anthony Giddens, em seu livro A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas (1993). Como se percebe, Giddens observa o florescimento da homossexualidade, masculina e feminina como outro elemento do livre-arbítrio sexual nessa criação da sexualidade plástica, vista como um elemento transgressor do cotidiano hegemonicamente monitorado. Emblemática, nesse sentido, é a cena contada pela narradora do conto de Aline Menezes, o que nos ajuda a combater a atitude reacionária por parte de segmentos conservadores:
“A voz de George, revelando-me o seu desejo, enquanto fazíamos amor naquele verão, continuava martelando dentro de mim. Queríamos ter uma relação verdadeira, que fosse incapaz de anular o que cada um tinha de único e particular. Nunca, em nenhum momento de nossa convivência, George atreveu-se a me escrutinar. Nem o contrário. E aquilo me impressionava e me encantava profundamente. Cada vez mais. Durante nossa história de amor, George confiou em mim. E eu tinha a impressão de ter encontrado alguém que me ajudava a ser livre”. “O corpo de George” celebra o amor como felicidade brotada do íntimo de cada pessoa, felicidade que existe por si mesma e não condicionada por coisas exteriores. Além de representar, por excelência, o sentimento de uma relação romântica, o amor expresso no conto de Aline Menezes também se manifesta como a energia mais elementar, mais forte e mais bela da evolução.
O amor é a força paradoxal que une e interliga, mas que simultaneamente liberta e individualiza. Eis por que o amor nos encoraja a descobrir e desenvolver, em nós e em nossa volta potenciais sempre novos. Emoções desempenham um papel central não somente para o sentir individual, mas também para o comportamento das pessoas na sociedade. A decisão tomada por George em não mexer no seu corpo e, “nua, sem cortes, sem nenhuma cicatriz”, se apresentar amorosamente à sua amada que a acolheu “exatamente como veio”, acena para a defesa da realização da energia amorosa expressa em individualidade livre e interligação humana intensa.
* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG.
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Resenha publicada pelo autor em sua página no Facebook, no dia 5/9/2019: https://bit.ly/