Chegamos ao mundo rasgando carnes, esquartejando em lâminas e lasers os segredos do universo. Sua mãe abriu-se ao meio para lhe trazer assim, meio bonito, meio feio e completamente inacabado. Dizem que eu rasguei o ventre da minha mãe com as mãos, e no dia em que decidi partir ela também se partiu, mais uma vez. Apresento-lhe o prefácio da história da minha história, que não parece real, mas não é ficção.
– Ela deu baixa no hospital agora? Mas faltam doze semanas!
– Sim, doutor, ela está aqui, com problemas sérios!
– Estou a caminho.
– Espere, doutor, estou recebendo uma informação a respeito… O quêêê? Como assim a criança está rasgando a barriga?
A caminho do hospital talvez o médico se perguntasse o que teria levado aquela mulher saudável, com todos os pré-natais em dia, a dar à luz um bebê prematuro. E no último exame, a dúvida: uma menina!? Todos os exames anteriores indicavam um menino.
– Desfibrilador, desfibrilador!
– Não vai aguentar.
– Mais uma vez.
– De novo, rápido!
O primeiro sentimento que tive no que não sei se posso chamar de vida foi como o Big Bang, uma grande explosão. Com estilhaços, coisas e seres escorrendo à deriva por paredes de sangue. Alguns pareciam embriagados, totalmente perdidos. Eu não, eu olhava para frente, apenas sabia a direção, bem ali, naquele sol de carnes quentes, estava o meu destino.
– Não é possível!
– Mas o que é isso?
– Está… está rasgando!
– Faça algo, pelo amor de Deus!
– Não sei o que fazer. Nunca vi isso antes!
Consegui, com a ponta de algo que acho que posso chamar de cabeça, perfurar aquele globo misterioso. Dei algumas “cabeçadas” extras, é claro, como tudo na vida, senti todo o meu corpo filetado tremer, mas enfim estava lá dentro. Era quente e úmido, tinha um cheiro forte, de vida. Algum tempo depois, que eu não sei precisar quanto, estava me sentindo claustrofóbica. Tinha me adaptado a todas as texturas, todos os cheiros, todos os sabores que ali existiam. Nada mais me desafiava, e a situação ficou entediante. Vez ou outra percebia algo transpassar a minha atmosfera, aquele emaranhado de céu vermelho, como se alguém estivesse me observando, evento esse que aguçava a minha imaginação.
Certo dia estava muito calor, e não dava para aguentar a pressão. Eu não era fisicamente grande demais para aquele espaço. Ele é que era pequeno aos meus anseios. Creio que tive ali, naquele momento, a minha primeira crise de ansiedade. E foi fatal.
– O que está acontecendo aqui?
– Doutor… Chegou a tempo!
– Meu Deus!
– Eu não sei, eu não sei…
– Estamos confusos!
Com a mão esquerda resolvi apalpar de maneira mais agressiva que o habitual aquelas paredes mornas e macias, que eu conhecia tão bem. Então percebi que poderia tocar mais fundo, não precisava haver limites, a casca não era grossa o suficiente para deter a minha vontade. E o mais interessante foi descobrir uma coisa chamada força, uma força que não era compatível com a fragilidade do meu ser. Enfiei meus pequenos dedos naquela massa fresca, mole, viscosa. E eles a perfuraram sem nenhuma resistência. Apenas um gemido, um enorme e cavernoso gemido. Senti tudo balançar, retirei os dedos. Uma estranha coisa brilhosa adentrou pelas frestas criadas, e fez-se a luz.
– Veja, são as pontas dos dedos! Que coisa bizarra!
– Vamos puxar por aqui mesmo?
– Está louco?
– E tem algum procedimento padrão pra esse tipo de situação?
– Tem! Não vamos deixar ela sofrer. Tentaremos uma operação arriscada, mas que pode funcionar. Aplicaremos uma injeção letal na criança, depois a retiraremos com calma.
– Vamos tentar salvar os dois. O bebê quer viver!
– Não tem como! A anestesia não está funcionando, ela não vai aguentar a dor.
– Deixe o meu filho viveeeeer!
– Ela não estava desmaiada?
– Joana, tente ficar calma, vamos resolver da melhor maneira.
– Não sabemos como resolver, isso é totalmente incomum!
– Já disse que sacrificaremos a criança!
– Você perdeu a cabeça?
Então coloquei as duas mãos, mais essa coisa chamada força. E comecei a arrancar os pedaços. Parte por parte, bem devagar. Eu não tinha pressa. Estava sentindo o momento. Era a vida explodindo em sangue. E não era lúdico, e não era romântico. E doía, e o prazer também não me pertencia, porque a luz, a luz feria os meus olhos e a minha pele, e vozes e gemidos machucavam meus ouvidos, e o líquido quente que desatinava a escorrer livre começava a queimar os meus dedos, maculados de rubro e dor.
– Isso não é um bebê, é um monstro!
– É só uma criança que está lutando pra viver!
– Matando a própria mãe? Você mataria a sua mãe pra sobreviver?
Quando abri uma fenda do tamanho que imaginei que meu pequeno corpo pudesse passar, ergui os braços para cima, o que me pareceu um gesto natural. Ouvi gritos, que não saíam de mim. Eu estava em silêncio, mas meu olhar não era mudo.
– Rápido, qual é a sala?
– Que sala, doutor?
– A sala da minha paciente com contrações prematuras. Você acabou de me ligar.
– Desculpe, doutor, pensei que o senhor já estava lá. É a sala 666.
– Como assim, quem está lá?
– Só dois enfermeiros, que eu saiba.
– Não. Estou vendo aqui na ficha, tem outra assinatura. Quem é este médico?
– Deve ser um plantonista…
– Que estranho, não conheço essa assinatura.
***
– Ela não está se mexendo!
– E nós não fizemos nada. Vou matar esse demônio!
– O que é isso? O que está fazendo? Carlos, me ajude a segurá-lo! Ou chame por socorro!
Depois de uma luta corporal intensa, vi o homem fugindo ferido e atordoado quando o verdadeiro médico invadiu sala adentro, junto com dois seguranças. O impostor abriu e pulou a janela do terceiro andar de uma maneira tão perspicaz que não parecia deste mundo, assim como eu. O enfermeiro chefe estava morto com um material cirúrgico no pescoço. Eu tinha feito mais do que romper violentamente a barriga da minha genitora: alguém tinha morrido por minha causa, alguém queria me matar. Nunca fui inocente, já cheguei ao mundo com as mãos sujas de sangue.
Uma semana depois, rumei para casa nos braços fortes da minha mãe. Os médicos custaram a acreditar em duas coisas: a primeira – em como ela sobreviveu e curou-se tão rápido após tal circunstância; a segunda – de que modo ela ainda quis me levar consigo. Eles achavam que eu era uma aberração, que poderia passar os dias órfã em uma clínica para pessoas com algum tipo de problema sério e não identificado, ou quem sabe ser doada e estudada pela NASA. Mas eu não queria ser estudada, eu queria estudar. Ainda naquele ano, meu pai foi acusado de vários crimes: assassinato, tentativa de homicídio e falsidade ideológica. Nunca mais o vi.
Quando completei dezenove anos, comuniquei à minha mãe que eu iria desbravar outros mundos, ou morar fora, em seu entendimento. Ela não soube o que dizer, éramos bastante unidas, e eu não tinha sequer mencionado a ideia antes. Apenas cheguei com a notícia, que mais lhe pareceu uma sentença de morte.
Na manhã em que estava de partida eu tinha certeza que a despedida iria doer. Como não sou muito adepta a sentimentalismos, não quis prolongar o momento, apenas me entreguei a um abraço, nenhuma palavra. O olhar profundo e lacrimejante dela fitou-me com súplica. Dei as costas, fechei a porta. Um feixe de luz ofuscante cruzou pelo marco com pedaços de minúsculas partículas brilhantes, e um líquido escarlate escorreu por entre os meus pés. Ela havia se partido novamente. Eu olhei para trás uma última vez. Depois ergui a cabeça, fechei os olhos, respirei fundo, abri enormes asas e voei.
Texto por Paula Cunha
Biografia da autora:
Paula Cunha. Natural de Uruguaiana, RS. Filha de um artista plástico e uma professora, gêmea univitelina. Casada. Formada em Letras – Espanhol pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Reside em Passo Fundo, RS.