“Como você veio parar aqui?”
Essa pergunta era comumente feita pelas mulheres que ali já estavam, foi feita para mim e para outras três que eu vi chegarem na sequência dos dias. Uma pergunta indelicada, mas ali não haviam tratos delicados com as feridas abertas, e havia muita curiosidade com qualquer detalhe de fora que apetecesse os longos dias e noites já passados e por vir. Os personagens das novelas da tarde e da noite já não apresentavam novidades, era preciso saber sobre quem chegava. Nome, idade, onde vive, o que faz lá fora, e novamente: como você veio parar aqui? O que você tem? Mas você é tão jovem…
Pensando hoje nessa pergunta, percebo que dez anos antes eu já tinha ouvido algo semelhante. Eu tinha quinze anos e estudava a oitava série – o fim do ensino fundamental – em um supletivo da cidade onde eu vivia, em uma aula de matemática a professora, de quem não lembro o nome e nem a feição, com espanto na minha facilidade em resolver um cálculo (simples) me lançou quase o mesmo questionamento: o que você está fazendo aqui?
Perguntas que se encontraram nas respostas mesmo com a distância de uma década.
Mas voltando para lá onde me juntei a essas mulheres, éramos quinze, divididas em quatro quartos e dividindo um banheiro, dividindo a mesa, café da manhã, almoço, o amargo das dores, brindes de água em canecas de plástico, e até doces gargalhadas em alguns momentos, só não tão doces quanto o café com leite servido às 08h da manhã.
Oficialmente o dia começava às 07h30min em uma fila indiana por ordem de chegada, momento em que ganhávamos nossas medicações e as canecas de plástico com água, que posteriormente recebiam o doce café com leite que mencionei acima, esse que acompanhava dois sanduíches: um recheado de uma mancha de margarina, outro recheado de uma mancha de geleia, de modo que em ambos sobravam bordas muito maiores do que as bordas costumam ser. Até hoje não compro pães fatiados como àqueles.
O almoço, servido às 11h30min, vinha em recipientes de isopor, as famosas marmitas, e acompanhavam talheres que combinavam: de plástico. Como se corta um bife com uma faca de plástico? Às vezes era preciso abaixar um pouco a cabeça, aproximar-se da comida, e com a ponta dos dedos levar o bife até a mordida.
Esses frágeis talheres me faziam lembrar o dia que cheguei, era um domingo de fevereiro, minha mãe e meu irmão mais velho me acompanhavam, havia livros na minha bolsa e pude mantê-los comigo, mas o tênis tinha cadarço, com ele eu não podia entrar. Em quinze dias o que menos importou foram os pelos do meu corpo crescendo, e assim é até hoje, se quisesse tirá-los teria que estar acompanhada de uma enfermeira no banheiro, o que seria uma experiência um tanto diferente – ser observada enquanto raspo os pelos das pernas, da axila -, observada como quem tem os movimentos controlados, não observada com desejo e ternura.
O cheiro típico de hospital nos lençóis não me incomodava, mas toda manhã vê-los com a luz do dia que entrava pela janela me causava algo – um lembrete. Brancos com um padrão estampado em azul marinho, a sigla com as iniciais da instituição e logo abaixo a especificação: hospital psiquiátrico.
Como eu vim parar aqui?
Eu me fazia também essa pergunta. Talvez nos primeiros dias eu tenha me achado uma farsa, tenha pensado que não fui tão longe quanto outras mulheres que lá estavam por motivo igual. Talvez tenha me achado normal demais para estar no mesmo lugar onde alguém servia cuias de chimarrão imaginárias e outro alguém caminhava de um lado para o outro em uma agitação de quem sente falta da droga.
Passados os dias eu me habituei, até arriscava aceitar uma cuia e tentava pegála no ar, em uma tarde trancei o cabelo molhado de uma mulher que poderia ser minha avó, e que lembrava minha avó, não pelo seu jeito ou aparência, mas pelo seu nome: Tereza, que pode ter como apelido Tetê, que é também apelido de Maitê, que era a forma carinhosa que minha avó me chamava. A família da Tereza estava sempre prestes a buscá-la, assim ela contava e acreditava, não sei exatamente se nos momentos de delírio ou lucidez.
A solidão que esses dias me renderam, ou melhor, a descoberta de uma face oculta – da solidão e de mim -, foi talvez o início da sensação, hoje em dia familiar, de estar flutuando: não haviam raízes lá, não havia família, não havia como me esconder – dos outros e de mim -, não havia como chorar compulsivamente sem ser interrompida, não haviam referências que me puxassem à terra firme. Eu só não flutuei mais e me perdi entre as nuvens porque havia uma redoma que impedia, eu bem queria que fosse um ventre materno, pelo menos estaria quentinha, acolhida, talvez ouvisse palavras bonitas e ganharia um carinho de vez em quando.
Não é mentira que momentos assim lembrem detalhes cotidianos antes despercebidos, o pôr do sol é mais bonito, há uma enorme vontade em sentir o vento no rosto, saudades da própria cama, do próprio quarto, de um pedaço de chocolate, usar o banheiro sozinha… Mas passa longe de ser uma história de superação, elas não acontecem lá dentro, ou uma história de redescoberta, não foi assim. Penso que é mais como um programa de proteção a testemunha: eu sou levada a um lugar antes desconhecido, não tenho contato com os elementos do meu cotidiano anterior, mas o dia que eu cruzar a porta e voltar para o mundo real, eles irão me caçar de alguma forma, eu sou a testemunha, também a vítima, e a ré; o crime: minha psique.
Aqui fora a rotina estabelecida lá dentro da redoma já não fazia mais sentido, os horários voltaram à confusão, assim como meus sentimentos, mas isso já é o começo de outra história.
Biografia da autora:
Há 28 anos conversando sozinha, cresci imaginando realidades alternativas e tentando habitá-las. Escrevo desde que descobri que a escrita são os melhores ouvidos. Escrevo para registrar, para lembrar e para não esquecer, e até então, escrevo para mim.